Apresentamos uma entrevista exclusiva com o vencedor do prêmio Pritzker 2016, Alejandro Aravena, publicada na edição número 31 da Revista AOA. Foi realizada pelo comitê editorial da Revista AOA -representado por Yves Besançon, Francisca Pulido e Tomás Swett- e acompanhado pelas fotografias de Álvaro González. A generosa disponibilidade e carinho de Aravena permitiu abordar questões profundas sobre seu pensamento e projeção arquitetônica, especialmente da Bienal de Veneza.
Sem dúvidas, o ano de 2016 marcou a consolidação internacional do arquiteto, que em janeiro tornou-se o primeiro chileno a receber o Prêmio Pritzker, sendo também o primeiro diretor latino americano da Bienal de Arquitetura de Veneza. Desde ali, como reza o lema que define a mostra, continua "Reportando desde o fronte" e incentivando arquitetos de todo o mundo a compartilharem as batalhas em seus países.
No total, foram 88 trabalhos de 37 países que abordam temáticas relacionadas à segregação, a desigualdade, os subúrbios, o saneamento, os desastres naturais, déficit habitacional, migração, marginalidade, tráfico, resíduos, poluição e a participação comunitária. Junto à declaração de princípios que acompanha o chamado que definiu a Bienal, Aravena explicou que a exposição é "sobre aprendizado e o enfoque das arquiteturas que, através da inteligência, intuição, ou ambos, são capazes de fugir do status quo (...). E no lugar da resignação ou amargura, propõem e fazem algo novo".
Justamente é isso o que define o trabalho de Aravena e do Elemental, que em um passo além de este "fazer algo", recentemente liberou o uso de quatro de seus projetos de habitação social. Vale dizer, qualquer arquiteto ou instituição pública ou privada poderá utilizar as plantas e detalhes construtivos dos conjuntos Quinta Monroy de Iquique, Colonia Lo Barnechea em Santiago, Villa Verde em Constitución e as premiadas habitações expansíveis em Monterrey no México. Uma decisão que fala "da necessidade de trabalharmos juntos em abordar o desafio da rápida urbanização ao redor do mundo", muito alinhado com o tema da Bienal.
Em uma longa conversa com o comitê editorial da Revista AOA ele abordou estas questões, tendo como ponto de partida o que está sendo feito -ou melhor, deixando de fazer- para formar arquitetos capazes de definir as perguntas adequadas que permitam à arquitetura fornecer as respostas sociais necessárias.
Você muitas vezes se refere à necessidade de buscar perguntas ao invés de dar respostas frente a uma problemática arquitetônica. Com este foco, o que você acha da formação dos novos arquitetos? O que é necessário para definir os problemas reais de contingência e, desde aí, abordar o ensino da arquitetura?
Se você esclarecer a que deve se dedicar arquitetura, por adição consegue o que ou como deve ensiná-la, por isso tentarei acometer o tema desde vários focos. O primeiro é assumir que o que se ensina hoje é, basicamente, um conjunto de regras disciplinares segundo o qual se julgam os objeto que são produzidos. Pelo geral, se alude mais ao artístico formal e leis de composição do que a uma tradição disciplinar específica. Se bem que isso pode desenvolver e fazer expandir a disciplina desde seu próprio conjunto de regras, o risco é que tanto as regras como o tipo de problemas não sejam compartilhados pelo restante da sociedade, e somente importem a outros arquitetos. Então a discussão arquitetônico converte-se em um crítica especializada ou a análises estilísticas formais que importam muito pouco ao resto da sociedade. Portanto, uma primeira questão é ver quanto se deve introduzir uma pessoa nesse corpo de conhecimentos específicos e quanto partir desde problemas absolutamente inespecíficos, que lhe importem e nos que possam opinar qualquer cidadão. Ou seja, sair da especificidade do problema e ir à inespecificidade da pergunta. Se pudermos entender que os problemas de que a arquitetura tem que lidar são aqueles que importam à sociedade, a maneira de contribuir é a partir deste corpo de conhecimento específico. Ou seja, traduzir as forças em jogo em formas, que é finalmente o que os arquitetos sabem fazem. Não é transformar-se em economista, político ou antropólogo, mas conhecer as suas linguagens permite-nos compreender o código das forças que, em seguida, devem ser traduzidas em formas. Geralmente fazemos pouco o exercício de compreender as linguagens de outras disciplinas e, quando fazemos, abandonamos o núcleo da arquitetura, que é fazer projetos.
Há anos, em uma discussão que tive com Hashim Sarkis, então reitor de Harvard e hoje Diretor do MIT, dizíamos que há um momento em que a arquitetura bifurca-se, provavelmente no final dos anos 60 e início dos 70. De um lado estão aqueles que afirmam algum tipo da competência criativa para serem gênios, e desenvolvem-se todos os ismos possíveis: pós-modernismo, minimalismo, desconstrutivismo, etc. Mas essa autonomia disciplinar tem uma linha muito fina com a irrelevância, ou seja, ocupar-se de coisas que não preocupam a mais ninguém, senão os próprios arquitetos. O outro caminho é os que optam por ocuparem-se de problemas de pobreza, subdesenvolvimento e desigualdade, mas abandonando o conhecimento específico da arquitetura para transformarem-se em consultores de organismos com siglas e fazer artigos acadêmicos. Visto isso, podemos concluir que o problema está em não organizar a informação em forma de propostas. O valor da arquitetura é que não toma a informação para fazer um diagnóstico, mas uma proposta. A organização das 'partículas' de informação em forma de propostas é o poder específico de arquitetura...
Montar o quebra-cabeça, mais que organizar as peças soltas?
É como afiar uma espada. Quando isso é alcançado, é porque todas as partículas estão na mesma direção. Não estão necessariamente todas de acordo ou dizem o mesmo, mas apontam a uma direção. O desafio da arquitetura, e por extensão, de seu ensino, é ser capaz de afastar-se da arquitetura na área de problemas não-específicos que podem ser importantes à sociedade e sintetizá-los em propostas arquitetônicas específicas. Para que, em seguida, a proposta seja devolvida para a sociedade e julgada. Por isso que é tão difícil produzir uma boa obra de arquitetura.
O que definiria, então, uma boa obra?
É aquela capaz de sintetizar um espectro ou camadas de variáveis que partem em questões absolutamente práticas e concretas. Os Starchitect são criticados por se preocuparem com a dimensão icônica da arquitetura, respondendo ao estritamente disciplinar quando devem se preocupar também com os problemas das pessoas. Mas se consideramos somente os problemas e abandonamos a dimensão artística do projeto, ele também está incompleto.
Voltando ao tema da educação, devemos entender que se algum poder há na arquitetura é o da síntese, e nesse sentido não se deve ter medo de começar por projetar a pergunta e identificar quantas variáveis tem a equação. Ao falar de 'equação' o que explicita são os termos nos quais deverão ser respondidos depois. A dificuldade -ou talvez a graça- da arquitetura, é que, para essa determinada equação, não há uma resposta única. Mas a capacidade de explicitar que é o que informa a forma do projeto é o tipo de questão que se esperaria abordar no ensino da arquitetura. Normalmente, o que fazem os arquitetos, e o que se ensina a fazer, é que ante a possibilidade de que forças contraditórias façam que a obra ou o objeto final não seja todo o elegante julgado a partir do conjunto de regras de arquitetura, acomoda-se a pergunta.
Como fazer os croquis depois da obra terminada...
Exato, e isso tem várias dificuldades. Por um lado, como arquiteto deve-se ser capaz de sintetizar na forma do projeto e em uma única proposta inclusive forças contraditórias. Por outro lado, requer-se de uma mudança de paradigma: se seguimos pedindo a um projeto de habitação social que somente seja respondido como dimensão escultórica, estamos julgando mal. É a pergunta que deve ser distinta, não a resposta. Por isso sou tão crítico de como está o ensino da arquitetura hoje, porque o que vejo, geralmente na academia, é um circuito de pessoas que depende de publicações, simpósios e congressos, e que se ocupam somente de temas que parecem muito potentes. Os problemas que, de verdade, importam, parecem não ter méritos desde o ponto de vista acadêmico, são muito comuns e correntes, e por isso não têm glamour. É preciso entender e dar outra tensão às perguntas e logo, ao julgar, também compreender a verdadeira complexidade do problema e, portanto, reavaliar a maneira em com a qual decide-se se um projeto é exitoso ou não.
Forças em jogo
A capacidade de questionamento que hoje tem um aluno ou um jovem profissional muitas vezes, é baixa, buscando resultados imediatos e diretos. A fase inicial do questionamento é bastante limitada, a lógica do processo de concepção não parece ser desenvolvido na formação dos arquitetos.
Antes do questionamento está a abertura em abordar o problema com tudo o que venha ao caso, uma mentalidade que permita distinguir o relevante do que não é. Não é questionamento no sentido crítico ou de juízo negativo. Mas é complexo, pois quando um cliente chega com uma demanda, não necessariamente tem clara a pergunta. A construção da pergunta é parte do ato criativo, deve discriminar o que importa e o que não: que vai informar a forma, a estrutura, o orçamento, o clima, as normas, o usuário, etc., partindo desde questões muito concretas e mensuráveis. No entanto, estão as dimensões intangíveis, regidas pelo que chamamos de 'certezas indizíveis', onde é difícil saber se estão bem ou mal e que também formam parte do projeto, como o caráter do edifício. Nisso radica a dificuldade da produção arquitetônica. Por muito que se tem identificado e hierarquizado todas as variáveis, e não há receita para a construção da pergunta, mas é um ato criativo. E logo o salto desde que identificas as variáveis do problema à proposta que sintetiza todas essas forças em jogo... É arte, no sentido de se mover com certezas parciais, é intuitivo, não está garantido, não é um processo linear, ou consequência de suas circunstâncias, aparecem variáveis que são mais que as circunstâncias e ainda assim são pertinentes... Ensinar tudo isso é muito complexo.
Qualquer temática gera possibilidade de questionamento para fazer a pergunta? Quais devem ser abordados sempre dentro da equação?
Em princípio, eu diria que basta que haja acordo sobre algo que importa. Uma das maneiras de se adentraste bem no problema é que não é preciso fazer um seminário para explicá-lo. Ao dizer 'poluição', todos entendemos que há um problema, todos o sofrem e todos podem opinar. O mesmo com congestionamento, segregação, insegurança, sustentabilidade, migrações... O assunto é como entrar em uma discussão que não pertence à arquitetura, mas com o conhecimento específico da arquitetura, que é traduzir em forma e logo organizar em forma de proposta o que começa levantar para esse problema. Há componentes físicos, de processos, de governabilidade e se decompõe em seus componentes sociais, políticos, econômicos, ambientais, etc. O tema é que seja algo que todos entendamos que seja desejável ocupar-se e, logo, que a entrada ao problema seja criativa. O que marca a diferença não é suar a camisa, não é somente trabalhar muito, porque se você não conseguir chegar a algo que clareie e traga o problema para um estado diferente, esse esforço é inútil. Como, também não importa somente ter uma ideia e depois não ser capaz de implementá-la ou alcançar uma mudança significativa.
De alguma forma este discurso supõe uma volta à dimensão pública do papel da arquitetura e do arquiteto em nosso país? A dimensão social que o Elemental tem impresso na sua arquitetura, de certa forma, está reposicionando um papel que existia há 50 anos. O mesmo feito que o MOP tinha te convidado a colaborar é uma conquista para todos os arquitetos. Você sente estar a fazer uma mudança a este respeito?
Sim e não. Você sente que tem feito algo diferente, por algo que está posto no olho da atenção. Mas ainda não há nada que teria que ser feito para mudar o que estamos olhando para fora da janela de bilhões de pessoas. Mais do que uma volta para o social, do que tem sido discutido muito, eu diria que há uma confiança de que quando vai chegar a questões complexas que são importantes, mas um será capaz de fazer uma contribuição.
Mas isso, necessariamente, supõe riscos.
Em geral, se os arquitetos não têm garantido 100% preferem não se envolver. Escolhem bem os encargos e se acomodam. Mas se o problema importa -e isso é a mudança do julgamento, embora falte muito para chegar lá-, se ganhamos 51-49 já valeu a pena ter ido. Mas é preciso saber viver com 49 que não atendem a expectativa de "sucesso". A mudança está em entender que você deve primeiro identificar um problema que importe e depois ver como fazer a diferença. E, para isso, devemos entender que as restrições são a melhor coisa que pode acontecer. Em vez de removê-las, deve-se agregá-las, porque quanto maior a complexidade, maior a necessidade de síntese. Um artigo acadêmico é linear, de cima para baixo, da esquerda para a direita. Em vez disso, uma proposta é tudo simultâneo, e a capacidade de sintetizar essas forças opostas é tremendamente poderoso.
É o que reconhece teu Prêmio Pritzker?
Se algo aconteceu com o Pritzker não é tanto ter ganho, mas com que tipo de projetos. Por natureza, a arquitetura pode caber em áreas que importam, de volta no radar do tipo de profissão que você vai quando você tem um problema complexo. A mudança é novamente feita para se sentir sociedade pode contribuir em seus próprios termos. Na medida em que somos capazes de demonstrar com fatos que não são custo adicional, mas um valor agregado, vamos voltar a clamar para questões complexas e transversais.
O caso mais emblemático que tocamos no Elemental é Constitución. Houve uma pergunta inicial -como se protege a cidade contra o tsunami-, mas com o processo de participação da comunidade entendemos que isso era apenas um quarto da questão. Havia outras dimensões a serem respondidas: proteção contra inundações e não só contra tsunami; carência de espaços públicos, onde passar o tempo livre; e construção de identidade associada com acesso ao rio, porque era a natureza e não os edifícios destruídos o que construía a identidade. Se você não entendesse que a pergunta tinha quatro coisas para contestar, haveria respondido bem a pergunta equivocada. Quando você analisa o projeto é um bosque de mitigação entre a cidade e o mar a um custo de U$ 48 milhões, contra U$ 30 milhões que custaria para simplesmente desapropriar e fazer do zero, ou U$ 42 milhões que teria custado um muro, cerrto, a partir desse ponto de vista é um custo extra. Mas quando você entende as quatro variáveis para responder e projetos existentes no sistema de investimento público para o mesmo lugar no total de US $ 52 milhões, o que fez o projeto foi para salvar US $ 4 milhões por entender que a questão era mais complexa. Se alguém puder provar que a proposta de valor, em vez de chamar apenas quando há dinheiro e tempo, você vai ser quem é chamado quando não há nem dinheiro nem o tempo.
A batalha de Veneza
É o selo que você procurou imprimir na Bienal de Veneza com o chamado de "reportando do fronte"? Significa dar a resposta adequada inclusive a perguntas que podem estar equivocadas?
Identificar perguntas que importem e dar boas respostas conta, é complexo, difícil e até ingrato. Implica uma certa luta, a batalha. E supõe que quem enfrentou essas batalhas pode compartilhar como fizeram para alcançar uma proposta de valor, como no caso de Constitución. Buscou-se compartilhar casos, ferramentas, estratégias, experiências, de tal maneira que ao voltar ao lugar de origem, todos possam fazer como fazer com mais armas, com dimensões que talvez nem imaginavam pertinentes para teu lugar de origem. Poder antecipar-se a ver que um problema que hoje não existe em sua realidade, está latente... Se você compartilha os conflitos, tem uma capacidade antecipatória, e eventualmente compartilha conhecimentos replicáveis em outros contextos. Mais que compartilhar a pesquisa, necessitam-se experiências. Isso é reportar desde o fronte.
Como foi recebido o chamado? Respondeu-se segundo o que havias visualizado?
O título funcionou bem, algo assim como "onde aperta o sapato". Por um lado ordena: falemos de coisas difíceis, controversas e do que é feito para resolver. Mas é também um chamado amplo o suficiente para que todos os problemas tenham lugar: questões de imigração, ambientais, econômicas... A migração na Europa não é uma questão de arquitetos, afeta a todos os que têm imigrantes e vão querer ver na Bienal que ideias existentes para lidar com isso. E também se refere ao país de origem: o que você poderia fazer para mudar as condições de desigualdade que empurram o deslocamento da população. No geral, funcionou porque provocou discussão de questões que são das sociedades, e não arquitetos.
Em qualquer caso, quis concentrar a chamada na qualidade do entorno construído, nem sequer na arquitetura, porque inclui espaços públicos, infraestrutura, inclusive o território. E é a qualidade do ambiente construído que, desde nosso âmbito, pode contribuir para a qualidade de vida, assim como há outros que projetam as políticas econômicas e sociais eficientes ou fazem invenções científicas. Não apenas as emergências, catástrofes ou crises humanitárias destroem a qualidade de vida, também a mediocridade das periferias da Europa ou a banalidade da construção nos Estados Unidos, onde ninguém corre o risco de deixar o catálogo por medo de processos judiciais. Os exemplos são milhares, cada lugar pode relatar quais são essas condições que não permitem oferecer qualidade no ambiente construído e, consequentemente, prejudicam a qualidade de vida...
Dos arquitetos atuais, quem você considera relevante pela qualidade de suas respostas a desafios como estes?
De novo, em distintas dimensões, aqueles que tentam sintetizar ou abarcar componentes que não eram evidentes. Shigeru Ban entra em campos aparentemente alheios ao arquiteto, tais como refugiados na África. Em si mesmo o fato de lidar com uma criança africana não é garantia de qualidade, todavia é preciso fazer, por meio da arquitetura, alguma contribuição. E a capacidade de Ban está fazendo a diferença através do projeto. Não necessariamente tudo é da ordem humanitária. Seguindo com os Pritzker, em Peter Zumthor, a intensidade e a qualidade de sua arquitetura dão uma resposta duradoura para a sustentabilidade, que embora não seja barata, envolve uma espécie de reserva moral como para resistir ao passar do tempo. Ele está preocupado com várias dimensões, pode-se dizer que está no espectro da arte. Ou mesmo Kazuyo Sejima, que depura um projeto até não restar mais nada dele. Seus projetos não são minimalistas, porque sintetizam o que é a resposta, não a pergunta. Souto de Moura é outro capaz de integrar uma maneira de fazer que tem consequências sobre a mão de obra que ocupa ou recursos que são os mesmos de sempre, mas usados de maneira surpreendente. Wang Shu, com o Museu de Ningbo na China é um daqueles momentos quando alguém consegue sintetizar desde a maneira de construir, usando telhas e tijolos de demolição do entorno, para redefinir a tipologia de museu. Se você tiver apenas qualidade formal, fantástico, é uma forma de contribuir, mas não o suficiente. É desejável entrar em questões que importem a muitos e cujo benefício atinja o maior número possível de pessoas.